Profissionais de Educação Física e o SUS: desafio nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (artigo)
O caminho até nossa chegada no SUS
Durante muito tempo nosso campo de atuação ficou restrito a aspectos que eximiam o setor público como potencial área a ser explorada. Até alguns anos, os cursos de graduação em Educação Física se quer traziam disciplinas como saúde pública e epidemiologia em sua grade curricular. Hoje temos, ainda que de maneira tímida, alguma atenção dada à atuação do profissional de Educação Física no setor público. Mas antes de entrar no mérito destas possibilidades, explicarei sucintamente do que estamos falando.
O Sistema Único de Saúde (SUS), embora formalizado com a Constituição Federal de 1988 e com as Leis orgânicas da Saúde (8.080/1990 e 8.142/1990), foi possível graças à vários movimentos pregressos, como a Reforma Sanitária na década de 70, que buscou fomentar mudanças e transformações no sistema de saúde para melhoria das condições de vida da população; e a 8ª Conferência Nacional de Saúde em 1986, que teve como tópicos de discussão o entendimento da saúde como direito, a reformulação do sistema nacional vigente, além do financiamento do setor (BRASIL, 1990a; 1990b; 1988).
Com o entendimento da saúde como um direito universal, muita coisa mudou (para melhor). De uma maneira muito simplificada, temos a saúde organizada em três níveis de complexidade. A baixa complexidade, denominada de Atenção Básica ou Primária à Saúde, é compreendida pelos Postos de Saúde, Unidades Básicas de Saúde ou Centros de Saúde, que visam com uma tecnologia baixa atender as principais demandas de saúde da população. Em uma linguagem mais epidemiológica, abarcam cerca de 80% das demandas de saúde. A média complexidade refere-se às ações e serviços de saúde que atendem agravos de saúde da população, sobretudo em ambiente ambulatorial ou hospitalar, com maior aporte tecnológico e apoio para diagnóstico e tratamento. Pode ser representado pelas Policlínicas, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os centros de reabilitação, os centros especializados de odontologia, os centros de doenças infecciosas, dentre outras estruturas similares. Lidam com cerca de 15% das demandas de saúde. Idealmente são referenciados pela atenção básica. Por fim, a alta complexidade refere-se a um conjunto de procedimentos que demandam de alta tecnologia e alto custo, oferecendo serviços qualificados e normalmente representados pelos hospitais. A demanda destes (deveria ser) é de 5%.
Entendendo a Atenção Básica como a complexidade que organiza a saúde no Brasil, até mesmo pela sua vasta abrangência, os principais acontecimentos no sentido do SUS se deram neste nível. Em 1991 criou-se o Programa dos Agentes Comunitários de Saúde (PACS), que visou contribuir para a redução das mortalidades infantil e materna, além de ampliar a cobertura dos serviços de saúde. No ano de 1994 regulamenta-se o Programa Saúde da Família (PSF), que formata a atuação multiprofissional daqueles profissionais da Atenção Básica para uma maior resolutividade. A resposta foi tão positiva que, por volta do ano 2004, o PSF passa a se tornar a principal estratégia de saúde no Brasil, denominada de Estratégia Saúde da Família (ESF) (SILVA, 2016). Com a ESF, a forma de assistência à saúde se torna mais completa e orgânica, com processos de trabalho alinhados que visam atender aos princípios do SUS, assegurando uma relação estreita com as comunidades. Ainda neste sentido, quando falamos em ESF, estamos falando das equipes presentes nos Postos/Unidades/Centros de saúde, cuja composição normalmente se dá por Médicos da Família, Enfermeiros, Técnicos de Enfermagem, Odontólogos, Técnico de saúde bucal e Agentes Comunitários de Saúde (BRASIL, 2012).
Apesar da alta capacidade resolutiva destas equipes, e visando atender ao importante princípio do SUS, denominado “integralidade”, colocado na Lei 8.080/90, em seu Art.º7 como “conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema”, o Ministério da Saúde entende como necessária a criação de uma modalidade de serviço complementar à ESF, os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) (BRASIL, 1990b).
Com a Portaria nº 154 de 2008, surgem os Núcleos de Apoio à Saúde da Família. Trata-se de um serviço multidisciplinar com o objetivo de apoiar, ampliar, aperfeiçoar a atenção e a gestão da saúde na Atenção Básica/Saúde da Família (BRASIL, 2008). Dentro das categorias permitidas, estão os Profissionais de Educação Física. Se antes da criação dos NASF a atuação dos Profissionais de Educação Física se dava de maneira, muitas vezes, impositiva e desarticulada, a formalização deste serviço subsidia a aproximação destes profissionais com a equipe de referência da população, oportunizando uma intervenção mais completa e assertiva.
A ideia principal dos profissionais que compõe as equipes dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família é prestar suporte à equipe de Estratégia Saúde da Família, levando de maneira estratégica a expertise das suas categorias. O Apoio Matricial (ou matriciamento), se caracteriza como uma das principais ferramentas neste contexto. Segundo o Caderno de Atenção Básica nº 27, a proposta é, através de um conjunto de profissionais que não necessariamente possuem uma relação direta e cotidiana com o usuário (profissionais do NASF), assegurar, de modo dinâmico e interativo, a retaguarda especializada nas equipes de referência (no caso as equipes de Saúde da Família). Neste sentido, as dimensões de suporte podem ser assistencial ou técnico-pedagógica. A primeira produz ações diretas com os usuários, podendo ser de maneira compartilhada; e a segunda volta-se para apoio educativo com e para a equipe (BRASIL, 2010).
Durante o apoio matricial as equipes de referência e as equipes do NASF compartilham conhecimento e planejam conjuntamente as ações de um território adscrito, de modo a tornar o processo mais resolutivo, interativo e participativo. Estão dentro deste processo ações que envolvam a troca de conhecimento entre os profissionais, como discussões de casos e atendimentos compartilhados, por exemplo. As ações realizadas nunca perdem o foco na proposta de corresponsabilizar os atores envolvidos, empoderando as comunidades a serem responsáveis por si mesmas e pelo próximo (BRASIL, 2012). Dentro da dimensão assistencial, estão previstos aos profissionais dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família uma série de ações, sempre relacionadas com o campo de atuação de cada categoria. É importante deixar claro que as ações idealmente são propostas e planejadas de maneira compartilhada com os profissionais vinculados ao usuário. Desta forma são construídos os Projetos Terapêuticos Singulares (PTS), bem como outras possíveis ações.
O Caderno de Atenção Básica nº 39 traz de maneira clara as modalidades de atuação e ações presentes entre os profissionais do NASF. Em síntese estão os atendimentos individuais, os grupos e atendimentos coletivos, as atividades de educação com e para a equipe de Estratégia Saúde da Família, e as reuniões de planejamento (BRASIL, 2014).
Atuação dos Profissionais de Educação Física nos NASF
Os atendimentos individuais podem ocorrer tanto no espaço do Posto/Centro/Unidade de Saúde, como no domicílio do usuário, e normalmente envolvem a participação dos profissionais da equipe de referência. Dentro das possibilidades dos profissionais de Educação Física estariam, por exemplo, o auxilio na reabilitação pós-traumática, reabilitação pós-operatória, atendimentos a pacientes que sofreram Acidente Vascular Cerebral, realização de avaliação antropométrica e outros testes para alguns casos específicos determinados pela equipe NASF, dentre outras possibilidades. Cabe deixar claro que todas estas estariam previamente planejadas e em sincronia com as ações de demais profissionais do NASF, bem como da equipe de referência. No caso do atendimento a um usuário em reabilitação pós-traumática, por exemplo, a atuação, muito provavelmente, ocorreria conjuntamente com médico da família, enfermeiro (da equipe de referência) e fisioterapeuta do NASF (SILVA, 2016).
Os grupos e atividades coletivas podem ocorrer em qualquer espaço do território e possuem um grupo de participantes. No caso dos profissionais de Educação Física, podem envolvem grupos de convivência; grupos focais (temático em doenças crônicas, por exemplo); grupos de promoção de saúde (para usuários que não necessariamente possuem algum diagnóstico, estando envolvido no grupo puramente pela intenção de manter e melhorar seus níveis de saúde); grupos voltados para saúde laboral, dentre outros. Normalmente possuem alguns critérios. É fundamental que a participação dos usuários seja de alguma forma registrada nos prontuários, visto que a participação neste tipo de atividade é uma importante informação de saúde. A constituição dos grupos normalmente surge da demanda local, a partir das discussões geradas durante as reuniões de matriciamento (SILVA, 2016).
As atividades de educação podem ser voltadas diretamente para a população ou mesmo para os profissionais de saúde da rede. Mais uma vez é fundamental que sejam organizadas de acordo com as demandas e/ou determinação do Ministério da Saúde. A maioria destes momentos envolverão mais de uma categoria profissional, como por exemplo, a organização de uma palestra voltada para a saúde da mulher, no mês temático do “Outubro Rosa”, onde inúmeros profissionais poderão contribuir, cada qual com sua expertise.
Um exemplo de educação permanente para a equipe poderia ser um momento onde os profissionais de Educação Física oferecessem uma capacitação aos Agentes Comunitários de Saúde, para que os mesmos pudessem passar informações básicas sobre a prática de atividade física (como trajes adequados, hidratação e respiração durante a prática) aos usuários que rotineiramente encontram nas visitas domiciliares. Considerando que muitas pessoas não vão até o Posto/Centro/Unidade de Saúde, estas informações poderiam repercutir positivamente na vida destas pessoas.
De modo transversal a estas modalidades estão as articulações intersetoriais, haja vista que a atuação da Atenção Básica em Saúde deve se dar em nível de território, e a articulação com outros atores torna mais efetiva as propostas. Por articulações intersetoriais podemos entender desde a aproximação com igrejas, conselho de moradores, clubes, escolas, empresas da região, até a aproximação com outros serviços de saúde (como os CAPS) e ainda outras secretarias do município, como as Secretarias de Assistência Social, Educação, Esportes e Cultura.
Cabe ressaltar que, no âmbito do SUS, as possibilidades de atuação do Profissional de Educação Física não se resumem aos NASF. Embora existam cadastrados no sistema do Ministério da Saúde aproximadamente 3.000 profissionais nos NASF em todo o território nacional, sua atuação pode se dar em serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em suas diferentes modalidades (para pacientes na infância e adolescência - CAPSi; para usuários de Álcool e Drogas – CAPSad; e para pacientes com transtornos mentais severos, que se dividem em CAPS I, II ou III, à julgar pelo porte do município); Centros de Reabilitação (também na média complexidade), com foco, por exemplo, em cardiopatias e outros grupos especiais; e ainda outras modalidades que a gestão entender como conveniente. Um outro “braço”, relacionado com questões de saúde, mas vinculado à Assistência Social (SUAS), é a atuação dos Profissionais de Educação Física nos Centros de Referência Especializado para População em Situação de Rua (popularmente conhecidos como Centros POPs); ou mesmo nas Casas Lares (para crianças e adolescentes). Contudo, a modalidade mais emergente no SUS, cuja atuação apresenta grande alcance na população são os Núcleos de Apoio à Saúde da Família.
Neste sentido, e considerando a carência de materiais que abordam esta temática, lancei o livro “NÚCLEO DE APOIO À SAÚDE DA FAMÍLIA: aspectos legais, conceitos e possibilidades para Profissionais de Educação Física”. A Resenha na contracapa foi feita pelo Professor Marino Tessari (CREF 000007-G/SC) sendo divulgado no site do CONFEF e de CREFs pelo país. Lançado em 2016, já vêm sendo adotado em Instituições de Ensino Superior de Educação Física do Brasil.
Este livro traz, de maneira estruturada, importantes subsídios aos Profissionais de Educação Física quanto à sua atuação nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). O primeiro capítulo traz uma breve síntese da saúde no Brasil; o segundo aborda o NASF sob o âmbito legal e seus fundamentos; o terceiro capítulo mostra a relação do Profissional de Educação Física no NASF, destacando características da profissão e suas possibilidades; o quarto capítulo traz as modalidades de atuação dentro do NASF; o quinto capítulo traz possibilidades de avaliações, testes, bem como parâmetros para prescrição de exercícios no âmbito da atenção básica; e o sexto e último capítulo traz valiosas informações sobre o sistema utilizado pelos profissionais da atenção básica (E-SUS), aplicado ao contexto dos Profissionais de Educação Física.
Referências
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Núcleo de Apoio à Saúde da Família / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2014. 116 p.: il. – (Cadernos de Atenção Básica, nº 39)
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Departamento de Atenção Básica. – Brasília: Ministério da Saúde, 2012. 110 p.: il. – (Serie E. Legislação em Saúde).
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção a Saúde. Departamento de Atenção a Saúde. Diretrizes do NASF: Núcleo de Apoio a Saúde da Família / Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção a Saúde, Departamento de Atenção a Saúde – Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 152 p.: il. – (Serie A. Normas e Manuais Técnicos) (Caderno de Atenção a Saúde, nº 27).
BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 154 de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio a Saúde da Família – NASF. Brasília: Ministério da Saúde, 2008.
BRASIL. Lei n.º 8.142, de 28 de dezembro de 1990. Dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde – SUS e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 31 dez. 1990a.
BRASIL. Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Brasília: Diário Oficial da União, 20 set. 1990b.
BRASIL. Constituição Nacional (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988.
SILVA, P.S.C. Núcleo de Apoio à Saúde da Família: aspectos legais, conceitos e possibilidades para a atuação dos Profissionais de Educação Física. Palhoça: Unisul, 2016.
Este artigo foi publicado no site do CREF/SC no dia 10 de fevereiro de 2017 e é de autoria de Paulo Sérgio Cardoso da Silva. Sua versão original pode ser visualizada clicando aqui.
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